O objeto do agir humano.
A primeira pergunta é sobre o que é o bom ou o bem. Se o livro inicia com o questionamento, há também uma afirmação: todo o indivíduo, assim como toda ação e toda escolha, tem em mira um bem e este bem é aquilo a que todas as coisas tendem. O fim de nossas ações é o Sumo Bem, mas, como o conhecimento de tal fim tem grande importância para nossa vida, devemos determiná-lo para saber de qual ciência o Sumo Bem é objeto.
Tal ciência é a ciência mestra (que é a Política) e seu estudo caberá à Ética. É objeto da política porque as ações belas e justas admitem grande variedade de opiniões, podendo até ser consideradas como existindo por convenção, e não por natureza. O fim que se tem em vista não é o conhecimento do bem, mas a ação do mesmo; e esse estudo será útil àqueles que desejam e agem de acordo com um princípio racional, por isso não será útil ao jovem que segue suas paixões e não tem experiência dos fatos da vida.
Mas, se todo o conhecimento e todo trabalho visam a algum bem, qual será o mais alto de todos os bens? O fim certamente será a felicidade, mas o vulgo não a concebe da mesma forma que o sábio. Para o vulgo, a felicidade é uma coisa óbvia como o prazer, a riqueza ou as honras; aqueles que identificam a felicidade com o prazer vivem a vida dos gozos; a honra é superficial e depende mais daquele que dá do que daquele que recebe; a riqueza não é o sumo bem, é algo de útil e nada mais.
Dessa forma, devemos procurar o bem e indagar o que ele é. ora, se existe uma finalidade para tudo o que fazemos, a finalidade será o bem. A melhor função do homem é a vida ativa que tem um princípio racional. Consideramos bens aquelas atividades da alma, a felicidade identifica-se com a virtude, pois à virtude pertence a atividade virtuosa. No entanto, o Sumo Bem está colocado no ato, porque pode existir um estado de ânimo sem produzir bom resultado:
“Como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem”[1].
Sendo a felicidade a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo e tendo-na identificado como uma atividade da alma em consonância com a virtude, não sendo propriamente a felicidade a riqueza, a honra ou o prazer, etc; a felicidade necessita igualmente desses bens exteriores, porque é impossível realizar atos nobres sem os meios:
“O homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão, alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude”[2].
Por isso, pergunta-se se a felicidade é adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou adestramento; se é conferida pela providência divina ou se é produto do acaso. Se é a felicidade a melhor dentre as coisas humanas, seguramente é uma dádiva divina – mesmo que venha como um resultado da virtude, pela aprendizagem ou adestramento, ela está entre as coisas mais divinas. Logo, confiar ao acaso o que há de melhor e mais nobre, seria um arranjo muito imperfeito. A felicidade é uma atividade virtuosa da alma; os demais bens são a condição dela, ou são úteis como instrumentos para sua realização.
As virtudes
Há duas espécies de virtudes: as intelectuais e as morais. As virtudes intelectuais são o resultado do ensino, e por isso precisam de experiência e tempo; as virtudes morais são adquiridas em resultado do hábito, elas não surgem em nós por natureza, mas as adquirimos pelo exercício, como acontece com as artes:
“(…) os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo seus instrumentos. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos”[3]…
Também pelas mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destrói toda a virtude, assim, como a arte: “de tocar o instrumento surgem os bons e os maus músicos”.
Com as virtudes dá-se o mesmo. É pelos atos que praticamos, nas relações com os homens, que nos tornamos justos ou injustos. Por isso, faz-se necessário estar atento para as qualidades de nossos atos; tudo depende deles, desde a nossa juventude existe a necessidade de habituar-nos a praticar atos virtuosos.
Ao nosso estudo, não interessa tanto investigar o que é a virtude, mas, estudar a virtude para tornar-nos bons. Mas consideremos que em nossa natureza o excesso e a falta são destrutivos:
“Tanto a deficiência como o excesso de exercício destróem a força; e da mesma forma, o alimento e a bebida que ultrapassam determinados limites, tanto para mais como para menos, destróem a saúde”[4]…
Também nas virtudes, o excesso ou a falta são destrutivos, porque a virtude é mais exata que qualquer arte, pois possui como atributo o meio-termo – mas é em relação à virtude moral; é ela que diz respeito a paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e meio-termo. O excesso é uma forma de erro, mas, o meio termo é uma forma digna de louvor; logo, a virtude é uma espécie de mediana.
Conquanto, cabe frisar que é meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta. Mas, nem toda ação e nem toda paixão admitem meio-termo; há algumas ações ou paixões que implicam em maldade, como a inveja. Elas são más em si mesmas, nelas não há retidão, mas erro. É absurdo procurar meio-termo em atos injustos; do excesso ou da falta, não há meio-termo.
Como nossa tarefa de estudo das virtudes tem como resultado a ação, e não o conhecimento da virtude, é necessário frisar a prática dos atos. É pela prática dos atos justos que se gera o homem justo, é pela prática de atos temperantes que se gera o homem temperante; é através da ação que existe a possibilidade de alguém tornar-se bom:
“Mas a maioria dos homens não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira. Nisso se portam como enfermos que escutassem atentamente seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhe prescrevem”[5].
A estrutura do ato moral.
A virtude relaciona-se com paixões e ações, mas, um sentimento ou uma ação pode ser voluntária ou involuntária. Às paixões ou ações voluntárias dispensa-se louvor e censura, enquanto as involuntárias merecem perdão e, às vezes, piedade; por isso, é necessário distinguir entre o voluntário e involuntário. São involuntárias aquelas ações que ocorrem sob compulsão e ignorância, é compulsório ou forçado aquilo em que o princípio motor está fora de nós e para tal em nada contribui a pessoa que age ou sente a paixão. Há atos praticados para evitar males maiores:
“Se um tirano ordenasse a alguém um ato vil e esse, tendo pais e filhos em poder daquele, praticasse o ato para salvá-los de serem mortos”[6]…
Tais atos assemelham-se aos voluntários pelo fato de serem escolhidos, e o princípio motor estar no agente, por estar na pessoa fazer ou não fazer. Ações de tal espécie são voluntárias, mas, em abstrato talvez sejam involuntárias, já que ninguém as escolheria por si mesmas. As ações são forçadas quando as causas encontram-se externas ao agente e ele em nada contribuiu. O voluntário parece ser aquilo cujo motor se encontra no próprio agente que tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato.
Também o ato de escolher parece ser voluntário, mas não se identifica ao voluntário porque seu conceito é mais extenso. Os atos praticados sob o impulso do momento podem ser voluntários, mas não escolhidos, a escolha não é comum às criaturas irracionais pois essas agem segundo seu apetite; a escolha envolve um princípio racional e o pensamento, ela é aquilo que colocamos diante de outras coisas.
O objeto da escolha é algo que está em nosso alcance e este é desejado após a deliberação. A escolha é, portanto, um desejo deliberado. Mas como o fim é aquilo que desejamos e o meio aquilo que deliberamos e escolhemos, as ações devem concordar com a escolha e serem voluntárias. O exercício da virtude diz respeito aos meios, logo, a virtude está em nosso poder de escolha. Em outras palavras, podemos escolher entre a virtude e o vício, porque se depende de nós o agir, também depende o não agir. Depende de nós praticarmos atos nobres ou vis, ou então, depende de nós sermos virtuosos ou viciosos: “(…) O homem é um princípio motor e pai de suas ações como o é de seus filhos”[7].
Os atos que encontram-se em nós, também devem estar em nosso poder e serem voluntários. É pelo exercício de atividades sobre objetos particulares que se formam as disposições de caráter. Não menos irracional é supor que um homem que age injustamente não deseja ser injusto, ou aquele que corre atrás de todos os prazeres não deseja ser intemperante:
“Podemos supor o caso de um homem que seja enfermo voluntariamente, por viver na incontinência e desobedecer os seus médicos. Nesse caso, a princípio dependia dele o não ser doente, mas agora não sucede assim, porquanto virou as costas à sua oportunidade. Tal como para quem arremessou uma pedra, já não é possível recuperá-la; e contudo, estava em nosso poder não arremessar, visto que o princípio motor encontrava-se no agente”[8].
O mesmo acontece com os vícios, que a princípio dependiam dos homens não se tornarem viciosos, mas foi por sua própria vontade e escolha que tornaram-se assim. Agora, já não é possível ser diferente. Fica esclarecido que as virtudes são voluntárias, porque somos senhores de nossos atos se conhecemos as circunstâncias, e estava em nosso poder o agir ou o não agir de tal maneira. Os vícios também são voluntários, porque o mesmo se aplica a eles.
As Virtudes Morais:
01. A coragem[9]
(andrêia)- é meio-termo em relação ao sentimento de medo e de confiança.
As coisas que tememos são terríveis e as qualificamos como males. Nós tememos todos os males, e temer certas coisas é até justo e nobre – é vil não temê-las. A pobreza ou a doença não devemos temer, nem aquelas coisas que procedem do vício ou aquelas que não dependem de nós; é covarde aquele que não suporta os insultos ou a inveja como deve. A bravura relaciona-se com as coisas mais nobres como a morte na guerra, e bravo é aquele que se mostra destemido em face a uma morte honrosa.
Os bravos, embora temam aquelas coisas que estão acima das forças humanas, caracterizam-se por enfrentá-las como se deve. Mas aquele que diz não ter medo, que é insensível ao que realmente é terrível, é o homem temerário; ele é um simulador de coragem, porque deseja parecer corajoso. Em contrapartida, aquele que excede no medo é covarde, porque ele teme o que não deve temer, falta-lhe confiança e é dado ao desespero por temer certas coisas.
A covardia e a temeridade são a carência e o excesso e a posição correta é a bravura.
A Temperança[10]
(Sofrosíne)- é o meio-termo em relação aos prazeres e dores.
As espécies dos prazeres com que se relaciona são os prazeres corporais. Mas não se relaciona aos objetos da visão, nem da audição ou do olfato. A temperança e a intemperança relacionam-se aos prazeres do tato e do paladar.
Ao intemperante somente interessa o gozo do objeto em si, no comer e beber e na união dos sexos. Por causa dos prazeres, a intemperança é, dentre os vícios, a mais difundida; e é motivo de censura porque nos domina, não como homens, mas como animais.
O apetite é natural, mas o engano é o excesso. Os intemperantes excedem com o que não devem, e mais do que devem.
O excesso em relação aos prazeres é intemperança e é culpável, porque, nesse estado, somos levados pelo apetite. O temperante, que ocupa a posição mediana, não aprecia o que não deve, nem nada disso em excesso. Os apetites devem ser poucos e moderados, e não podem opor-se, de modo algum, ao princípio racional. No homem temperante, o elemento apetitivo harmoniza-se ao racional, o que ambos tem em mira é o nobre.
A Liberalidade[11]
( Eleuteriótes)- é o meio-termo no dar e no receber dinheiro. O excesso é a prodigalidade e a deficiência é a avareza.
O homem liberal é louvado no tocante a dar e receber riquezas, mas é especialmente louvado aquele que sabe dar suas riquezas. O avarento quer o dinheiro mais do que deve e o pródigo esbanja a riqueza com seus prazeres. Quem melhor usa a riqueza é aquele que possui a virtude a ela associada: o homem liberal.
O homem liberal dá as quantias que convém, às pessoas que convém e na ocasião que convém, com todas as demais condições que acompanham a reta ação de dar, com prazer e sem dor. A liberalidade é uma disposição de caráter daquele que dá.
A avareza é deficiente no dar e excede no receber; a prodigalidade excede no dar e no não receber, esses não tardam em exaurir suas posses porque dão em excesso.
A Magnificência[12]
(Megaloprépeia)- é um meio-termo quanto ao dinheiro dado em grandes quantias; o excesso é a vulgaridade e o mau gosto, a deficiência é a mesquinhez.
É uma virtude relacionada com a riqueza, mas se estende apenas às ações que envolvem gastos. A magnificência é um gasto apropriado de grandes quantias, logo, ela deve ser apropriada ao agente e às circunstâncias.
Sendo os gastos do homem magnificente vultuosos e apropriados, tal serão os seus resultados. Um grande dispêndio com grandes resultados. A magnificência é um atributo dos gastos honrosos, como os que se relacionam a ofertas, construções e sacrifício aos deuses. Por isso o homem pobre não pode ser magnificente, porque não tem os meios de sê-lo.
A deficiência a essa disposição de caráter é a mesquinhez; este fica aquém da medida em tudo, em tudo o que faz estuda a maneira de gastar menos e lamenta até o pouco que tem.
O excesso é a vulgaridade, porque gasta além do que é justo. Por exemplo, dá um jantar de amigos na escala de um banquete de núpcias.
O Justo Orgulho[13]
(Megalopskhia)- é o meio-termo em relação à honra e à desonra. O excesso é a ‘vaidade oca’ e a deficiência é a humildade indébita.
O Justo Orgulho também pode ser chamado Magnanimidade ou Respeito Próprio. O homem magnânimo é aquele cujos mérito e pretensões são igualmente elevados, por isso essa virtude pressupõe outras, realçando-as. O homem magnânimo reclama a honra, mas aquela honra conferida ao homem bom lhe dará apenas prazer moderado, porque o Justo Orgulho relaciona-se com a honra em grande escala.
Ele é um extremo com respeito à grandeza de suas pretensões, mas é meio-termo na justiça de suas pretensões. O objetivo do homem magnânimo é a honra, e a respeito dela que ele é como deve ser.
O que fica aquém é o homem indevidamente humilde, que sendo digno de coisas boas, rouba de si o que merece e não se julga digno de coisas boas. Aqueles que ultrapassam a medida são vaidosos; todos que ignoram a si mesmos, aventuram-se a honrosos empreendimentos sem serem dignos para tal e logo fracassam.
O homem que excede no desejo à honra é o ambicioso (Afilotimia), o que fica aquém é desambicioso (Filotimia), o intermediário é o Anônimo.
A honra pode ser desejada mais ou menos do que se convém, ou da maneira e das fontes que se convém. O homem ambicioso deseja a honra mais que convém, o desambicioso não quer se honrado e fica aquém da medida.
A esta disposição de caráter o que se louva é um meio-termo no tocante à honra.
(Praótes)- é o meio-termo em relação à cólera; aquele que excede é o irascível, o que fica aquém é o pacato.
Louva-se o homem que se encoleriza justificadamente, tal homem tende a não deixar-se perturbar nem guiar-se pela paixão, mas ira-se da maneira, com as coisas e no tempo prescrito.
A deficiência é a pacatez, e essas pessoas não se encolerizam com coisas que deveriam excitar sua ira; também são chamados de tolos e insensíveis.
O excesso é o homem irascível, que encoleriza-se com coisas indevidas e mais do que convém.
A Veracidade[16]
(Alétheia)- é o meio-termo no tocante à verdade, o exagero é a jactância e o que a subestima é a falsa modéstia.
. A Pessoa Espirituosa ou Espírito[17]
(Eutrapelia)- é o meio-termo na aprazibilidade no proporcionar divertimento. O excesso é a chocarrice e a deficiência a rusticidade.
A Amabilidade[18]
(Filía)- é o meio-termo na disposição de agradar a todos de maneira devida e amável; o excesso é o obsequioso se não tiver propósito, e lisonjeiro se visa a um interesse próprio; a deficiência é a pessoa mal humorada.
A Modéstia[19]
(Aidémôón)- é o intermediário nas paixões e relativo a elas; aquele que excede é o acanhado e este se envergonha de tudo, enquanto aquele que mostra deficiência é o despudorado e não se envergonha de coisa alguma.
A Justa Indignação[20]
(Némesis)- é o meio-termo entre a inveja e o despeito, e refere-se à dor ou prazer da boa ou má fortuna dos outros. O excesso é a inveja, e a deficiência é o despeito.
A Justiça[21]
(Dicaiosíne)- nela faz-se necessário distinguir as duas espécies e mostrar em que sentido cada uma delas é um meio-termo.
A justiça é a disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo e a desejar o que é justo. Dessa forma, a justiça é uma virtude completa ou é muitas vezes considerada a maior das virtudes. É uma virtude completa por ser o exercício atual da virtude completa, isto é, aquele que a possui pode exercer sua virtude sobre si e sobre o próximo. Por isso se diz que somente a justiça, entre todas as virtudes, é o bem do outro, visto que é possível fazer o que é vantajoso a um outro. O melhor dos homens é aquele que exerce sua virtude para com o outro, pois essa tarefa é a mais difícil.
Há dois tipos de justiça, uma que se manifesta na distribuição das honras, de dinheiro entre aqueles que tem parte na constituição; e outra, que tem um papel corretivo nas transações entre os indivíduos; ela se divide em transações voluntárias e involuntárias.
Há quem defenda outro tipo de justiça, que não se enquadra nas citadas acima, que seria a reciprocidade. A reciprocidade não é justiça, porque pagar o mal com o mal ou o bem com o bem faz parte das ações dos cidadãos, e não caracteriza o agir justo, salvo em alguns casos.
A justiça política divide-se em natural e legal. A natural é aquela que tem a mesma força em toda parte; a legal é a justiça estabelecida. Alguns pensam que toda justiça é estabelecida porque há alterações nas coisas percebidas como justas, e se fossem naturais, teriam que ser imutáveis, como o fogo que arde em toda a parte. No entanto, ambas as espécies de justiça são mutáveis, as coisas justas por convenção assemelham-se a medidas, que não são iguais em toda parte.
No tocante à justiça, cabe destacar que é o caráter voluntário ou involuntário que determina o justo. O homem somente é justo quando age de maneira voluntária, e se age involuntariamente não é justo nem injusto, a não ser por acidente.
As Virtudes intelectuais
A alma humana possui duas partes: a que tem um princípio racional e a privada de razão. A parte racional da alma se divide em científica (direcional ou prática) e calculativa (especulativa e teórica). A calculativa é uma parte da alma que concebe um princípio racional, ela versa sobre coisas universais e teóricas, que não podem ser a não ser aquilo que são. O objeto da parte calculativa é a verdade, logo, para o conhecimento especulativo o bem se identifica com o verdadeiro e o mal com o falso.
A alma possui três elementos: a sensação, a razão e o desejo[22]. A sensação não controla a ação, e isto pode ser percebido nos animais que têm sensação, mas não produzem ação. A razão e o desejo determinam a ação, entretanto, de modo diferente, já que a virtude moral é uma disposição para a escolha; contudo, ela envolve o desejo por um fim e a razão descobre os meios próprios para esse fim:
“A origem da ação é a escolha, e da escolha é o desejo e o raciocínio com um fim em vista. Eis aí por que a escolha não pode existir nem sem razão nem sem intelecto, nem sem uma disposição moral”[23].
O puro pensamento nada anima, somente possui um poder animador assim dirigido para um fim; o homem, visto como um autor de ação, é uma união do desejo com a razão. A virtude de uma e de outra, devem constituir-se aquilo que permite chegar à verdade.
As disposições, pelas quais a alma possui a verdade, são cinco: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva[24].
1. O conhecimento científico(episteme)–
Seu objeto é o necessário e eterno; toda ciência pode ser ensinada e seu objeto aprendido. O conhecimento científico é um estado que nos torna capaz de demonstrar, é quando um homem tem certa espécie de convicção, além de conhecer os pontos de partida, que possui conhecimento científico. É uma disposição em virtude da qual demonstramos.
2. A Arte (tekné)-
É idêntica a uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocínio. Toda arte visa a geração e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa que tanto pode ser como não ser, e cuja origem está no que produz, e não no que é produzido. A arte não se ocupa nem com as coisas que são ou que se geram por necessidade, nem com as que fazem de acordo com a natureza. A arte é uma questão de produzir e não de agir.
3. A Sabedoria Prática (phrónesis)-
É característica de um homem que delibera bem sobre o que é bom e conveniente para ele. Mas o homem com essa sabedoria não procurar coisas boas somente para si, mas sabe deliberar sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa em geral.
A sabedoria pratica é uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são boas ou más para o homem.
4. A Razão Intuitiva (nõus)-
Consiste aquilo pelo qual aprendemos as últimas premissas de onde parte a ciência; ela aprende os primeiros princípios. Seu método é a indução, que apreende a verdade universal e a partir disso aparece como evidente a si.
5. Sabedoria Teorética. (sofia)-
A sabedoria é a razão intuitiva combinada com o conhecimento científico, orientada para objetos mais elevados. É, dentre as formas de conhecimento, a mais perfeita; superior à sabedoria prática que tem como objeto as coisas humanas e diz respeito à ação; deveríamos possuir ambas as espécies de sabedoria, mas de preferência a sabedoria teorética.
Depois de haver classificado as virtudes intelectuais, tentaremos uni-las em torno de um objetivo comum:
“Ora, todas as disposições que temos considerado convergem, como era de se esperar, para o mesmo ponto, pois quando falamos de discernimento, de inteligência, de sabedoria prática, e de razão intuitiva, atribuímos às mesmas pessoas a posse do discernimento, o terem alcançado a idade da razão, e serem dotados de inteligência e de sabedoria prática”[25].
Todas essas faculdades giram em torno de coisas imediatas, e o homem inteligente é aquele capaz de julgar as coisas com que se ocupa a sabedoria prática. Pois não só o homem dotado de sabedoria prática deve ter conhecimento dos fatos particulares, mas também a inteligência e o discernimento versam sobre coisas a serem feitas; a razão intuitiva também ocupa-se de coisas imediatas.
Aristóteles volta-se agora ao problema da utilidade da sabedoria teorética e prática. Neste contexto surgem três questões.
1º: Já que a sabedoria filosófica não considera nenhuma das coisas que tornam o homem feliz, e a sabedoria prática, embora trate dessas coisas, para que precisamos dela? A sabedoria prática é uma disposição da mente e é característica de um homem bom e não nos tornamos mais capazes de agir pelo fato de conhecê-las.
Se dissermos que o objetivo da sabedoria prática é tornar o homem bom, ela não terá nenhuma utilidade para aqueles que já são bons:
“… e, por outro lado, de nada serve ela (sabedoria prática) para os que não possuem virtude. Com efeito, nenhuma diferença faz que eles próprios tenham sabedoria prática ou que obedeçam a outros que a têm, e seria suficiente fazer o que costumamos fazer com respeito à saúde: embora desejemos gozar saúde, não nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina”[26].
2º: Pois, quanto aos que não são bons, esses podem consultar um homem sábio, da mesma maneira como procedemos com o médico, em vez de tentarem eles serem sábios? 3º: Será que a sabedoria filosófica, sendo inferior à prática, tem autoridade sobre a última?
A resposta é: 1º- Ambas as formas de sageza produzem felicidade, simplesmente pelo fato de serem virtudes:
“Antes de tudo, diremos que essas disposições de caráter devem ser dignas de escolha porque são virtudes das duas partes da alma respectivamente, e o seriam ainda que nenhuma delas produzisse o que quer que fosse”[27].
2º- Elas, de fato, produzem algo, não como a arte médica produz saúde, mas como a saúde produz saúde. Assim a sabedoria filosófica produz felicidade, porque é parte da virtude inteira:
“Ambas as formas de sageza produzem felicidade, pois são a sua causa formal, distinta da causa eficiente”[28].
3º- A sabedoria prática leva-nos a escolher o melhor fim a atingir, também a escolher os justos meios; no entanto, a sabedoria prática não pode existir independente da virtude. o fim que nos propomos alcançar, seja bom ou mau, não consiste numa sabedoria prática, mas na inteligência. Mas, desde que o fim seja justo, e isso é tarefa da virtude, a inteligência transforma-se em sabedoria prática:
“Por outro lado, a obra de um homem só é perfeita quando está de acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral; esta faz com que seja reto o nosso propósito; aquela, com que escolhamos os devidos meios”[29].
Podemos estabelecer outra relação entre os dois problemas: 1- que a virtude não é simplesmente uma sabedoria (como sustentava Sócrates), mas implica a sabedoria prática. 2- embora as virtudes naturais possam existir isoladas umas das outras, as virtudes morais não, pois qualquer virtude moral implica uma sabedoria prática, e esta implica todas as virtudes:
… e desta forma podemos refutar o argumento dialético de que as virtudes existem separadamente uma das outras, e o mesmo homem não é perfeitamente dotado pela natureza para todas as virtudes, de modo que poderá adquirir uma delas sem ter ainda adquirido outra. Isso é possível no tocante às virtudes naturais, porém não aquelas que levam a qualificar um homem incondicionalmente de bom; pois a presença de uma só qualidade, a sabedoria prática, lhe serão dadas todas as virtudes”[30].
A relação entre a sabedoria moral com a intelectual é estabelecida de modo abreviado. É verdade que é a sabedoria prática que determina os estudos em qualquer estado, mas ao fazê-lo ela não procede em vista da sabedoria teorética, mas em vista de seus interesses:
“Mas nem por isso domina ela a sabedoria filosófica, isto é, a parte superior de nossa alma, assim como a arte médica não domina a saúde, mas fornece só meios de produzi-la”[31].
[7] E.N. III, 5 – 1113 b 15.
[8] E.N. III, 5 – 1114 a 15
[9] E.N. III 6-9; 1115a /5 – 1117b/ 20
[10] E.N. III, 10-12; 1117b/ 25 – 1119b/ 20
[11] E.N. IV 1; 1119b/ 15 – 1122a/ 15
[12] E.N. IV 2; 1122a/ 20 – 1123a/ 30
[13] E.N. IV 3; 1123a/35 – 1125a /35
[14] E.N. IV 4; 1125b /1 – 1125b /25
[15] E.N. IV 5; 1125b /30 – 1126b /10
[16] E.N. IV 7-8; 1127a /15 – 1128b /5
[17] E.N. II 7; 1108a / 25
[18] E.N. II 7; 1108a / 30
[19] E.N. II 7; 1108a / 35
[20] E.N. II 7; 1108a / 35 – 1108b / 5
[21] EN, V 1-11; 1129a / 5 – 1138b / 15
[22] E.N. VI, 2; 1139a 20
[23] E.N. VI, 2; 1139a 30-35.
[24] E.N. VI, 3; 1139b 15
[25] E.N. VI, 11; 1143a 25
[26] E.N. VI, 12; 1143b 30
[28] E.N. VI, 12; 1144a 05
[29] E.N. VI, 12; 114a 10
[30] E.N. VI, 13; 1144b 35 – 1145a
[31] E.N. VI, 13; 1145a 10